Além dos aparelhos de votação, ministros do Supremo Tribunal Federal também foram alvos do ex-presidente
Por Giovana Frioli, Gabriel Belic, Alessandra Monnerat e Pedro Prata | O Estado de S.Paulo
Depois de se tornar réu por golpe de Estado, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) fez um pronunciamento à imprensa em que reciclou mentiras sobre o sistema eletrônico de votação. Ele disse, por exemplo, que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino teria afirmado que perdeu eleições por causa do voto eletrônico. Não é verdade.
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O ex-presidente Jair Bolsonaro, logo depois de se tornar réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe de Estado. Foto: Wilton Junior/Estadão |
O ex-presidente disse ainda que não pôde compartilhar, durante a campanha eleitoral, imagens do presidente Luiz Inácio Lula da Silva falando que o “pobre coitado” rouba celular para “tomar uma cervejinha” – frase jamais dita pelo petista.
Bolsonaro é acusado de organização criminosa armada, golpe de estado, tentativa de abolição violenta do estado democrático, deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado contra o patrimônio da União.
A reportagem tentou contato com a assessoria do ex-presidente, mas não teve resposta. Veja abaixo as checagens do Estadão Verifica sobre o pronunciamento desta quarta-feira, 26.
Auditoria do PSDB
O que Bolsonaro disse: que uma auditoria externa contratada pelo PSDB para as eleições concluiu que as urnas são inauditáveis.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Essa mesma alegação já foi checada pelo Verifica em 2021. Bolsonaro se refere a uma auditoria encomendada pelo PSDB sobre as eleições de 2014. É verdade que o relatório afirmou não ser possível auditar as urnas. Mas a mesma auditoria não encontrou problemas no sistema de transmissão dos dados das urnas para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Fraudes na votação são possíveis mas costumam ser localizadas e sem potencial de alterar significativamente uma eleição presidencial”, disse o texto, referindo-se a possível atuação irregular de mesários. Em 2021, o PSDB afirmou que “considera as eleições de 2014 limpas e confia nas urnas eletrônicas”. O TSE reitera que há, sim, formas de auditar a votação.
Flávio Dino e o voto eletrônico
O que Bolsonaro disse: que Dino disse que perdeu as eleições por causa do voto eletrônico.O Estadão Verifica checou e concluiu que: é enganoso. Não há registro de que Dino tenha dito que perdeu eleições por causa das urnas eletrônicas. Existem publicações antigas do ministro no Twitter, entre 2009 e 2013, em que ele critica o sistema eleitoral. As publicações haviam sido feitas com base em evidências compartilhadas na época pelo especialista Diego Aranha, que participou do Teste Público de Segurança (TPS) do TSE em 2012. O pesquisador havia divulgado fragilidades encontradas por sua equipe em um evento com participação de Dino. Como publicou o Projeto Comprova, atualmente, Aranha afirma que as vulnerabilidades foram corrigidas.
Inquérito 1.361
O que disse Bolsonaro: que o inquérito 1.361, do STF, foi aberto para apurar fraude no processo eleitoral de 2018. Segundo ele, por ordem da ministra Rosa Weber, a investigação tinha a intenção de retirá-lo da Presidência e colocar no poder o hoje ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com quem Bolsonaro havia disputado o segundo turno das eleições naquele ano.O Estadão Verifica checou e concluiu que: é falso. A investigação foi aberta pela Polícia Federal, em 8 de novembro de 2018, para apurar a suposta invasão de um hacker ao aplicativo que permite a instalação das listas com os nomes e dados dos candidatos na urna eletrônica. Como explicou o Comprova, o inquérito foi aberto por determinação do TSE e várias diligências foram adotadas pela PF e pelo Ministério Público para apurar o caso, mas não houve conclusão ou suspeita de que as urnas tivessem sido comprometidas.
Bolsonaro havia publicado o inquérito da PF em suas redes sociais, em agosto de 2021. No mesmo dia, a o TSE esclareceu que o ataque hacker não tinha representado risco à integridade das eleições de 2018 e que a investigação não havia sido concluída. Na época, Bolsonaro foi alvo de uma notícia-crime do TSE por supostamente vazar dados sigilosos relacionados ao caso. Não há evidências de que havia um “plano” de retirá-lo da Presidência.
Gilmar, Barroso e urna com voto impresso
O que disse Bolsonaro: que há um vídeo dos ministros do STF Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso elogiando o modelo de urna eletrônica com a impressora do lado. Ele diz que, poucos meses depois, o STF considerou a mudança de urna inconstitucional.O Estadão Verifica checou e concluiu que: é enganoso. Bolsonaro se refere a um trecho de entrevista de Barroso, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que foi editado para sugerir que ele elogiou o voto impresso. Como publicou o Verifica, o ministro comentou apenas sobre o design de um novo modelo de urna eletrônica, em 4 de maio de 2017. Um vídeo do TSE registrou a opinião dos ministros sobre a nova urna, incluindo Gilmar Mendes, mas os magistrados não comentaram sobre o voto impresso na filmagem. Na época, um módulo de impressão de comprovantes de votação seria adotado devido a uma minirreforma eleitoral aprovada pelo Congresso em 2015. Porém, uma liminar suspendeu a obrigatoriedade do voto impresso em 2018.
Múcio, Temer e Jobim
O que Bolsonaro disse: que o ministro da Defesa, José Múcio, o ex-presidente Michel Temer e o ex-ministro do STF Nelson Jobim defenderam que o 8 de Janeiro não foi golpe.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Embora Múcio tenha evitado qualificar o 8 de Janeiro como uma tentativa de golpe de Estado, o ministro defendeu, em entrevista ao programa Roda Viva, que os organizadores da trama golpista tenham “pena máxima”. Na ocasião, ele reforçou a necessidade de penas distintas para aqueles que “quebraram cadeira” e os verdadeiros orquestradores.
Já Temer, quando questionado sobre o indiciamento de Bolsonaro e a investigação da Polícia Federal que descobriu um plano para assassinar autoridades, não negou a existência de uma tentativa de golpe, mas disse que não foi adiante porque “não há clima no País”.
Jobim, por outro lado, disse à CNN Brasil que não considerava o 8 de Janeiro como um atentado contra a democracia. “Eu enxergo aquela manifestação da rua, que é tratada como golpe, como uma espécie de cara da frustração que tiveram de não obter o golpe militar”, disse.
PT e voto impresso
O que Bolsonaro disse: que em 2015, o Congresso aprovou o voto impresso, que foi derrubado pela então presidente, Dilma Rousseff. O PT votou para derrubar o veto de Dilma.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Uma minoria dos parlamentares petistas votou para derrubar o veto de Dilma ao voto impresso. Foram nove deputados e três senadores do PT a favor da derrubada, de acordo com uma lista divulgada pelo site O Antagonista. Naquele ano, a bancada do PT no Congresso era composta por 69 deputados e 12 senadores.
A justificativa de Dilma para vetar a implementação do voto impresso era de custo. O TSE tinha estimado que a despesa com compra de novos equipamentos seria de R$ 1,8 bilhão.
Motociata gigante
O que Bolsonaro disse: que havia 300 mil motos nas “motociatas” dele em São Paulo.O Estadão Verifica checou e concluiu que: é falso. O passeio de motos com Bolsonaro em São Paulo, no mês de abril de 2022, teve 3.703 motocicletas, segundo dados da Secretaria de Logística e Transportes (SLT) e da Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp). Em 2021, na primeira edição do evento, foram registradas 6.661 motos.
Celular e cervejinha
O que Bolsonaro disse: que não pôde compartilhar durante a campanha eleitoral imagens de Lula falando que o “pobre coitado” rouba celular para “tomar uma cervejinha”.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Como já mostrou o Verifica em diferentes ocasiões (aqui e aqui), uma entrevista antiga de Lula foi editada para parecer que ele teria defendido roubar celulares “para tomar uma cervejinha”. Na íntegra, a ideia não é defendida em nenhum momento.
Reunião com embaixadores
O que Bolsonaro disse: que está inelegível apenas por ter se reunido com embaixadores. Afirmou, ainda, que “pelo menos não foi com traficantes no morro do Alemão”.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Em julho de 2022, o ex-presidente se reuniu com 70 embaixadores estrangeiros no Palácio do Alvorada para uma apresentação de PowerPoint com informações falsas sobre o sistema eleitoral. Na ocasião, ele também fez ataques a ministros do STF.
Em junho de 2023, o TSE declarou Bolsonaro inelegível até 2030, sob acusação de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. A legislação eleitoral proíbe o uso da máquina pública e da estrutura do governo em benefício dos candidatos que buscam a reeleição.
Dessa forma, não é verdade que Bolsonaro tenha ficado inelegível apenas por se reunir com embaixadores. Além disso, o ex-presidente desinforma ao sugerir que Lula teve um encontro com traficantes no Complexo do Alemão. Ele se refere a uma visita do petista ao conjunto de favelas no Rio de Janeiro em 2022. Na ocasião, Lula se reuniu com lideranças comunitárias, e não comandantes do tráfico.
Boné e traficantes
O que disse Bolsonaro: que há imagens de Lula com o “gorro do CPX” na cabeça e que o atual presidente teria ido ao Complexo do Alemão para se reunir com líderes comunitários eleitos com apoio do tráfico.O Estadão Verifica checou e concluiu que: é enganoso. Bolsonaro tenta ligar a visita de Lula ao Complexo do Alemão, em outubro de 2022, ao tráfico de drogas. Como explicou o Verifica, o boné usado pelo presidente, durante a campanha eleitoral, contém uma abreviação relativa ao conjunto de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro. O acessório foi um presente dado pela ativista Camila Santos na visita à sede do jornal comunitário Vozes das Comunidades. Na ocasião, Lula participou de um encontro com líderes comunitários e fez uma caminhada pelo local. O ato havia sido organizado pelo ativista e jornalista Rene Silva, fundador do Vozes das Comunidades.
Inserções de rádio
O que Bolsonaro disse: que, na reta final das eleições, 1,5 milhão de inserções de rádio de sua campanha eleitoral foram negadas, no Nordeste especialmente. “Quando fomos reclamar, fomos advertidos, nos culparam”, afirmou.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. A poucos dias do segundo turno das eleições presidenciais de 2022, a campanha de Bolsonaro apresentou ao TSE uma denúncia de que “inúmeras” emissoras de rádio do Nordeste teriam deixado de reproduzir inserções partidárias do candidato.
O então presidente do TSE, Alexandre de Moraes, classificou a denúncia como “inconsistente” e pediu provas. Um novo documento apresentado pela campanha apontou o nome de oito rádios do Nordeste que, segundo a defesa, teriam transmitido 730 inserções a mais para Lula.
No entanto, como mostrou o Estadão na época, ao menos cinco rádios contestaram a acusação. Quatro afirmaram que o material de divulgação das duas candidaturas à Presidência foi divulgado corretamente. Uma quinta rádio alegou que a campanha de Bolsonaro atrasou a entrega do material. Outra emissora admitiu que houve erro na divulgação apenas em um dia da campanha, no dia 14 de outubro, por falha no software.
Multa ao PL
O que Bolsonaro disse: que, em 2022, o PL foi multado em R$ 22 milhões por entrar com uma ação no TSE. Ele indagou: “Alguém já viu advogado ser multado por peticionar ao Poder Judiciário?”O Estadão Verifica investigou e concluiu que: a declaração precisa de contexto. O ex-presidente refere-se a uma multa que o PL, partido pelo qual disputou a reeleição, foi obrigado a pagar depois de solicitar a anulação de parte dos votos para presidente do segundo turno. O partido sustentou que urnas apresentaram problemas em seu número de identificação em um processo de auditoria.
A alegação é falsa. Outros métodos permitiam identificar cada uma das urnas eletrônicas utilizadas no País. Na decisão que indeferiu o pedido e multou o partido, o ministro Alexandre de Moraes falou que houve má-fé na conduta. Ao contrário do que sugere Bolsonaro, a condenação não é anormal. Ela está prevista nos artigos 80 e 81 do Código de Processo Civil (confira aqui).
Delações secretas
O que Bolsonaro disse: que tudo o que o ministro Alexandre de Moraes faz é secreto e que há oito delações secretas de Mauro Cid.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Moraes derrubou o sigilo sobre os depoimentos de Cid em 19 de fevereiro, um dia depois de a Procuradoria-Geral da República denunciar Bolsonaro por golpe de Estado. A decisão tornou públicos 14 depoimentos do tenente-coronel.
Urânio e China
O que Bolsonaro disse: que o presidente Lula assinou 37 memorandos e acordos com a China. Entre eles, um que “entregou urânio (brasileiro) para a China”.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Os governos Lula e Xi Jinping assinaram 37 acordos de cooperação em diversas áreas. Nos memorandos relacionados à mineração (aqui) e tecnologia nuclear (aqui), as parcerias foram firmadas no campo de pesquisa e aprimoramento de práticas. Não há nenhuma menção à venda ou entrega de urânio brasileiro para a China. A Constituição brasileira diz que a extração e a comercialização do minério são monopólios da União. Apenas a empresa estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) pode explorar e comercializar urânio em terras brasileiras, e para fins pacíficos.
Recentemente, circulou o boato falso que Lula teria vendido uma jazida de urânio para uma empresa chinesa. Na verdade, uma mineradora peruana vendeu uma mina de estanho que opera nas imediações de uma promissora jazida de urânio, no Amazonas.
Bolinhas de gude
O que Bolsonaro disse: que, apesar de ter sido acusado de formar uma organização criminosa armada, não foram encontradas armas. “As armas apreendidas foram meia dúzia de bolinhas de gude”, afirmou.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. No voto para tornar Bolsonaro réu, o ministro Flávio Dino destacou que houve apreensão de armas brancas e de armas improvisadas no 8 de Janeiro. Ele lembrou ainda que vários dos acusados de tentativa de golpe de Estado são militares, que costumam andar armados. Vale destacar que, durante a invasão ao Planalto, participantes do movimento golpista roubaram armas não letais do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Em operações posteriores ao 8 de Janeiro, a Polícia Federal apreendeu armas de fogo com suspeitos de financiar o movimento antidemocrático (1, 2, 3).
Caso isolado
O que Bolsonaro disse: que o vandalismo no 8 de Janeiro aconteceu “antes de o pessoal acampado” ir para Brasília. De acordo com ele, existem vídeos que mostram que uma única pessoa sozinha quebrou tudo. O próprio presidente Lula teria dito que é preciso saber quem deixou as portas abertas do Palácio.O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Na realidade, há múltiplos registros de que a invasão às sedes dos Três Poderes e o rastro de destruição foram causados por um grupo grande de manifestantes. Não há provas que sustentem que apenas “um cara sozinho” quebrou tudo, ao contrário do que diz Bolsonaro.
O plenário do STF, por exemplo, foi invadido e depredado (veja aqui). Cadeiras dos ministros foram arrancadas e janelas foram quebradas. No Palácio do Planalto, também há registros de destruição. Os invasores danificaram obras de arte, como o quadro “As Mulatas”, de Di Cavalcanti, e o relógio de mesa de Balthazar Martinot.
Bolsonaro desinforma também ao tirar de contexto a declaração de Lula. A fala do petista não se refere a um único responsável, como insinua o ex-presidente. Na realidade, poucos dias depois dos atos golpistas, Lula apontou uma suposta conivência da Polícia Militar e das Forças Armadas com os criminosos.
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