Mapa do Crime revela os bairros mais perigosos do Rio: Centro, Grande Tijuca e Flamengo estão na lista de onde os roubos mais aumentaram

Ferramenta do GLOBO com dados inéditos mostra onde e quando os bandidos agem em quatro tipos de roubos: de celulares, de veículos, a transeuntes e em coletivo. Em 32 regiões, todos os quatro indicadores cresceram em 2024, contrariando tendência nacional.


Por Anna Bustamante, Felipe Grinberg e Rafael Soares | O Globo — Rio de Janeiro

Dentro de um ônibus a caminho de uma aula de dança na Lapa, no Rio, Aurora Visage se viu cercada: dois ladrões apontavam facas para seu pescoço e sua barriga, um terceiro pressionava outra lâmina contra sua cintura, pelas costas. “Passa o celular!”, ordenou um dos bandidos. Ela entregou o aparelho, mas se negou a informar a senha de desbloqueio, temendo que os criminosos acessassem aplicativos bancários. A violência escalou, e os homens foram para cima da DJ e performer, de 24 anos. Ela foi ferida com seis facadas, no braço esquerdo, na mão direita, nos ombros, na coxa e na barriga.


— Achei que morreria. Depois, fiquei traumatizada — conta a DJ.

Numa cidade que, só no ano passado, as estatísticas de segurança do estado apontam a média de 179 roubos (de qualquer tipo) por dia, a todo passo se pode viver a sensação de estar sujeito a dramas como o de Aurora. Mas há onde riscos se sobressaem e desafiam a atuação das forças de segurança pública, como mostra o Mapa do Crime, ferramenta interativa que O GLOBO lança hoje com dados inéditos para monitorar, por bairros, os roubos de celular, de veículos, a transeuntes e em coletivo, os que afetam mais o cotidiano da população.

O esquadrinhamento revela que 32 bairros (ou 21% das 147 unidades territoriais mapeadas) apresentaram crescimento nos quatro indicadores em 2024. Os lugares em que o perigo mais se alastra são o tema do primeiro capítulo de uma série de reportagens, até o próximo domingo, que analisa a dinâmica do que está por trás desses assaltos no Rio. Com base no que o Mapa do Crime identifica, o jornal ouviu policiais civis e militares, autoridades da área de segurança, promotores, especialistas e moradores. E teve acesso a documentos internos das polícias, inquéritos policiais e processos que tramitam na Justiça, com objetivo de jogar luz sobre as mudanças nas cenas criminais pelos bairros.

Insegurança no Centro, coração político da cidade

Assaltada e esfaqueada, Aurora foi atacada pelos bandidos ao passar pelo Centro, coração político e administrativo da cidade, sede da Assembleia Legislativa (Alerj), de secretarias estaduais, da Câmara Municipal e do Quartel General da Polícia Militar. Mesmo com esse cenário, ali os delitos examinados aumentaram. Em 2024, foram registrados 1.622 roubos de celulares — um aumento de 55,5% em relação ao ano anterior. O número é o maior entre todos os bairros cariocas para esse tipo de crime e representa o mais alto da série histórica do Centro na ferramenta do GLOBO, iniciada em 2020. O bairro também lidera o ranking dos roubos a transeunte, com 1.938 casos no ano passado, 1,9% a mais do que em 2023.

Os roubos de veículos explodiram: de 47 no ano retrasado, as ocorrências mais do que duplicaram e chegaram a 123 em 2024, outro recorde da série histórica do bairro. Já os crimes praticados em coletivos, como o sofrido por Aurora, alcançaram a marca de 233 registros e apresentaram crescimento de 41,2%.

Sentada num banco perto do motorista, a DJ nem reparou quando os ladrões embarcaram pela porta traseira, na altura da Praça Tiradentes, por volta das 20h30 de 5 de novembro do ano passado, uma terça-feira. A jovem evitava aquela linha, a 472 (Leme—Triagem), devido aos recorrentes relatos de assaltos. Mas era a única que ligava sua casa, na Zona Norte, ao estúdio que frequentava, na Lapa. Na noite em que foi esfaqueada, no entanto, ela não tinha dinheiro para pagar a corrida por aplicativo e resolveu arriscar. Foram segundos para os bandidos cobrirem as lentes das câmeras de segurança do veículo com folhas de jornal e começarem a saquear os passageiros. A repercussão do terror que viveu ainda a persegue.

— Tive que levar o que aconteceu para a terapia. Por meses não voltei a passar por aqueles lugares — diz ela, que foi socorrida por PMs, recebeu atendimento médico e, na mesma noite, foi conduzida à 5ª DP (Mem de Sá), onde, muito abalada, não conseguiu identificar os criminosos.

Na contramão de queda registrada no país

A cidade do Rio como um todo contraria uma tendência nacional de queda nos registros de crimes contra o patrimônio. Em 2024, segundo o Ministério da Justiça, os roubos de veículos no país, por exemplo, caíram 6,1%. Em outra direção, a capital fluminense experimentou aumentos nos quatro delitos esmiuçados no Mapa do Crime: os números de roubos de veículos, de celular, em coletivos e a transeuntes subiram, respectivamente, 40%, 39%, 37% e 3%.

Mapa do Crime: Onde os assaltos mais cresceram no Rio — Foto: Editoria de Arte

Uma lupa sobre os 32 bairros que mais puxaram os números para cima mostra que oito deles são vizinhos e estão situados num raio de apenas 5 quilômetros. Esse cinturão vai da Glória, na Zona Sul, até o Riachuelo, na Zona Norte, passando por Centro, Estácio, Cidade Nova, Praça da Bandeira, São Cristóvão e Maracanã — região que concentra as maiores explosões de violência de toda a cidade.

No Estácio, roubos a celular, de veículos e em coletivos mais do que dobraram em 2024, chegando aos patamares mais altos da série histórica. Ataques a motoristas e ônibus triplicaram no Maracanã: os roubos de carros passaram de 61 para 199, um aumento de 226%, e roubos em coletivos saíram de apenas 35 casos para 122, crescimento de 248%. Na Praça da Bandeira, 153 roubos de celular foram registrados em 2024, um acréscimo de 121,7% em relação ao ano anterior. Já em São Cristóvão, foram os roubos de automóveis que quase triplicaram, passando de 113 casos para 297.

Policiais que atuam na região e especialistas avaliam que uma disputa territorial entre facções do tráfico influencia a escalada de crimes. Ao longo de 2024, o Morro dos Macacos, em Vila Isabel, dominado pelo Terceiro Comando Puro (TCP), foi alvo de uma série de tentativas de invasão por parte do Comando Vermelho (CV).

Policiais que atuam na região e especialistas avaliam que uma disputa territorial entre facções do tráfico influencia a escalada de crimes. Ao longo de 2024, o Morro dos Macacos, em Vila Isabel, que até então era dominado pelo Terceiro Comando Puro (TCP), foi invadido pelo Comando Vermelho (CV). O conflito, que já contabiliza mais de uma dezena de mortes, persiste e envolve favelas que circundam a região onde os roubos se multiplicaram, como o São Carlos, no Estácio, o São João, no Engenho Novo, o Turano e o Fallet, ambas no Rio Comprido, e a Mangueira. Com exceção da primeira comunidade, controlada pelo TCP, todas as demais estão sob domínio do CV. Tanto invasores quanto reforços na defesa do território do Macacos são oriundos de favelas vizinhas.

— Percebemos que o acirramento do conflito no Morro dos Macacos teve consequências nos indicadores criminais nos bairros do entorno. Seja porque carros roubados na região da Grande Tijuca e do Centro passaram a ser usados na guerra, seja porque a presença constante da polícia nas favelas da região levou a uma migração e diversificação na atuação criminal, da venda de drogas nos morros para roubos no asfalto — afirma Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec).

Para o pesquisador, mudanças nos mercados ilegais abastecidos pelos roubos também podem estar por trás do incremento de crimes. Várias investigações da polícia apontam favelas da região como destino de produtos roubados: no Fallet e no São Carlos, funcionam centrais de desbloqueios de aparelhos roubados; já o Turano é um conhecido reduto de clonadores de carros.

Moradores e frequentadores têm a rotina marcada pelo medo de circular pelas ruas, principalmente, à noite. Na Grande Tijuca, os relatos são de que ladrões usam bicicletas e se passam por entregadores de aplicativos para surpreender vítimas com facas ou pistolas e roubar celulares. Também há registros do uso de fuzis em assaltos: em 19 de julho do ano passado, três criminosos usaram uma dessas armas de guerra para roubar um carro na esquina da Avenida Heitor Beltrão com a Rua Professor Gabizo, no Maracanã. Um morador, assustado, filmou a ação, que viralizou nas redes sociais: “Revista ele. Se estiver armado, vai tomar”, afirmou um dos assaltantes, enquanto o comparsa apontava a arma para um táxi que passava ao lado. Ao final, os bandidos levaram o carro, e a vítima foi embora a pé.

— Dá pena de quem precisa sair tarde do trabalho. Por aqui, são frequentes os casos de funcionários assaltados ao fim do expediente das lojas, depois das 22h. Quem mais sofre são os trabalhadores — lamenta um jornaleiro de 21 anos que trabalha nas imediações do Shopping Tijuca.

Influência de mudanças internas no Comando Vermelho

Além do corredor da região central, a cidade tem outros epicentros de roubo. No que se refere aos ataques a pedestres, a Barra da Tijuca, na Zona Oeste, só fica atrás do Centro em números absolutos, com 718 casos em 2024. Botafogo, na Zona Sul, com 653 registros, completa o pódio. Já o maior crescimento desse tipo de crime nos bairros com pelo menos 10 registros aconteceu em Laranjeiras, também na Zona Sul, onde as ocorrências subiram de 50 para 141, um aumento de 182%.

Mapa do Crime: bairros que ocupam as primeiras posições dos rankings de roubos — Foto: Editoria de Arte

Quanto aos roubos de celular, Tijuca e Maracanã — com, respectivamente, 581 e 455 registros — só ficam atrás do Centro em números absolutos. Acari, na Zona Norte, é o bairro com maior crescimento percentual (180%, de 25 casos para 70). Já Pavuna e Bonsucesso, bairros da Zona Norte cortados por vias expressas, lideram o ranking de roubos em coletivos, com 419 e 258 registros, respectivamente. O Centro é o terceiro colocado, com 233. Enquanto Ramos, à margem da Avenida Brasil, registrou o maior crescimento do crime, 357,1% — salto de 14 para 64 casos.

Os recordistas em roubos de veículos são dois bairros próximos um do outro na Zona Norte: Irajá, com 766 casos, e Pavuna, com 637. O terceiro do ranking é Bangu, onde 491 roubos foram registrados. O Rio Comprido, localizado no corredor de bairros que sofre com o avanço da violência na região central carioca, teve o maior percentual de aumento: 251,9%, passando de 27 registros em 2023 para 95 no ano seguinte.

Segundo o secretário de Segurança do Rio, Victor César dos Santos, mudanças na cúpula do CV no fim de 2023 foram determinantes para o crescimento dos roubos no Rio ao longo do ano passado. Na ocasião, uma crise interna foi desencadeada pelos assassinatos de três médicos num quiosque na orla da Barra da Tijuca. Integrantes da facção acreditavam que uma das vítimas era um miliciano. O engano culminou com a destituição de Wilton Carlos Rabello Quintanilha, o Abelha, do cargo mais alto da hierarquia do grupo fora do sistema prisional. Seu lugar foi ocupado por Edgar Alves de Andrade, o Doca, chefe do tráfico do Complexo da Penha, que logo impôs alterações na forma de atuar da organização.

— O CV tem um impacto muito grande nos crimes patrimoniais. Regiões dominadas pela facção concentram uma parte significativa dos roubos da cidade. Até 2023, com o Abelha à frente, a facção priorizava a exploração do território, uma prática importada das milícias. Era uma visão mais empresarial, que via a venda de drogas como parte do negócio, associado ao monopólio de venda de gás, gatonet, gelo. Quando o Doca assume, o perfil muda completamente. Essa atuação mais discreta e lucrativa deu lugar à guerra, ao enfrentamento com as forças de segurança e ao aumento dos índices — afirma Santos.

Para a economista Joana Monteiro, diretora do Laboratório para Redução da Violência (Leme), o aumento de roubos no Rio, na contramão dos indicadores nacionais, tem relação com a priorização de operações em detrimento do policiamento preventivo:

— Minha hipótese é que a ostensividade preventiva caiu nos últimos anos. Investimos muito na criação e expansão de unidades especiais, o que acabou por desmontar a estrutura territorializada da segurança, com foco na atuação em pontos quentes. Ou seja, deixamos de fazer o feijão com arroz para comer só refeições especiais. Fazendo um paralelo com o campo da saúde: estamos tomando o mesmo analgésico genérico, que são as operações, com pouca clareza do quão efetivo isso realmente é.

Questionada sobre a investigação do caso de Aurora Visage, a Polícia Civil afirmou que, oito meses depois, ninguém foi preso. O inquérito tramita na 1ª DP (Praça Mauá) e, segundo a corporação, testemunhas foram ouvidas e agentes realizam diligências para identificar a autoria do crime.

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