Um homem morto há quase três meses "assinou" documento apresentado por uma ONG em um projeto de aulas gratuitas de esporte financiado com dinheiro público no Rio de Janeiro.
Ruben Berta | UOL, no Rio
O caso envolve o Instituto Realizando o Futuro e o projeto Mais Rio em Movimento, que recebeu R$ 4,8 milhões de emenda parlamentar bancada pelo deputado Carlos Jordy (PL-RJ).
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O deputado Carlos Jordy diz nao ter ingerência sobre projeto para o qual destinou R$ 4,8 milhões em emenda | Kayo Magalhães - 2.jul.25/Câmara dos Deputados |
A assinatura foi encontrada pelo UOL em documento utilizado numa pesquisa de preços da ONG para contratar serviços de locação de carros com combustível para o projeto.
Uma das propostas apresentadas, datada de 23 de fevereiro de 2024, foi da empresa Transtar Serviços Empresariais e trazia o nome e a assinatura de Edson Diniz Ângelo — que havia morrido em 30 de novembro de 2023, aos 66 anos.
O documento com a assinatura de Ângelo reforça indícios, como o UOL revelou, de que ONGs suspeitas de desviar recursos públicos usam pesquisas de preços com cartas marcadas, favorecendo empresas específicas.
Por meio da contratação dessas empresas — algumas com ligação com os próprios dirigentes de ONGs — ocorrem desvios de recursos, com pagamentos por serviços ou produtos que, na prática, não são entregues.
Desde 2021, a Transtar participou de ao menos 40 pesquisas de preços — para serviços de transporte e de eventos, fornecimento de mobiliário e até de material para bibliotecas —, sem nunca ter vencido nenhuma concorrência em projetos com verbas de emendas.
As pesquisas foram realizadas pelos institutos Realizando o Futuro, Carioca de Atividades, Fair Play e Brasil Social, além da ONG Con-tato.
Fundada em 2013, a Transtar teve Edson Ângelo como único sócio a partir de agosto de 2020. Em 2019, ele também foi contratado pela ONG Con-tato como auxiliar de escritório. Em 2018, integrava o conselho de administração do ICA. Ambas as entidades estão sob suspeita de envolvimento em desvios de recursos públicos.
Deputado diz ter 'total interesse na apuração dos fatos'
O projeto Mais Rio em Movimento foi financiado por uma emenda da bancada do Rio de Janeiro, mas na prática foi assumida por Carlos Jordy. O deputado solicitou a execução do projeto pelo Instituto Realizando o Futuro, em parceria com a Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).
A proposta previa a oferta de aulas gratuitas de esportes como boxe, karatê e futebol em 21 núcleos, sendo 13 deles em Niterói, principal base eleitoral de Jordy. O projeto, iniciado em março de 2023, está sendo encerrado neste mês.
Jordy afirmou, por meio de sua assessoria, que não tem qualquer participação na gestão financeira do projeto nem escolhe ou fiscaliza os fornecedores. Ele declarou ter "total interesse na apuração dos fatos".
Desde 2023, o deputado destinou outros R$ 13 milhões em emendas individuais ao Instituto Realizando o Futuro, à ONG Con-tato e ao ICA.
Após a publicação de reportagens do UOL apontando suspeitas sobre as ONGs, parte desse valor — cerca de R$ 9 milhões — foi redirecionada para outras três entidades: Inatos, Núcleo Social Bem Viver e Movimento Cultural Social, que não têm histórico relevante de recebimento de verbas federais.
O que dizem a ONG e a Unirio
Em nota, o Instituto Realizando o Futuro afirmou que não possui nem cabe à ONG ter controle sobre o conteúdo das propostas enviadas por empresas não contratadas em chamadas públicas.
Já a Unirio disse que a assinatura de uma pessoa morta "causa estranheza" e que cabe aos órgãos competentes apurar os fatos. Ressaltou que a responsabilidade é exclusiva da empresa envolvida, que pode responder por "falsidade ideológica ou falsidade de assinatura".
A reportagem esteve no endereço da Transtar registrado na Receita Federal, na Barra da Tijuca (zona oeste do Rio), e foi informada de que a empresa nunca ocupou o local. Desde o início de 2025, a Justiça Federal tenta, sem sucesso, localizar representantes da Transtar, que é alvo de uma ação por dívida de R$ 143 mil em impostos federais.
Edson Ângelo morava sozinho em uma quitinete na zona norte do Rio. Após sua morte, ninguém mais foi visto no local, conforme o UOL apurou. O empresário também era dono da DHB Empreendimentos, que recebeu R$ 436 mil após a sua morte, em um projeto ambiental executado pela ONG Con-tato com recursos do governo estadual.
Empresa não detalhou serviço contratado
O Instituto Realizando o Futuro acabou contratando outra firma em vez da Transtar: a Telecoop Cooperativa de Transporte, que ofereceu um valor mensal de R$ 8.320 (R$ 5.320 por carros sem motorista e R$ 3.000 por combustível), ao longo de 16 meses.
Na proposta vencedora, não havia nenhum detalhe sobre o serviço: quais e quantos veículos seriam fornecidos nem quantidade de combustível estimada. A empresa nem sequer se referiu ao projeto correto: consta que seria o Meio Ambiente Informa, de outra emenda, do deputado Pedro Paulo (PSD-RJ).
Até o momento, a Telecoop já recebeu R$ 124.800, mas as notas fiscais emitidas não descrevem a quantidade de veículos usados nem o combustível consumido.
Em resposta por email, a Telecoop afirmou que o detalhamento está "no corpo das notas fiscais" e que a logística do serviço cabe ao contratante.
O Instituto nega irregularidades e afirma que os veículos foram usados para a mobilidade da equipe técnica entre os núcleos, supervisão da universidade e visitas técnicas da empresa de monitoramento.
A Unirio, por sua vez, confirmou que houve visitas a núcleos e museus, mas não há comprovação de quais veículos foram utilizados. A universidade disse ainda que o projeto ainda não está em fase de prestação de contas, mas que, se não houver comprovação adequada, uma comissão poderá solicitar a devolução dos recursos públicos.
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